O direito de brincar
Dilan Camargo*
O ato de brincar é o momento feliz em que toda criança se cria e se recria para a vida. Ato capaz de determinar o futuro adulto em que ela vai se tornar. Sem ter, na infância, o direito de brincar, ela vai perder, para toda a vida, uma das mais fecundas experiências de civilização e humanidade.
As brincadeiras, os jogos, a convivência com outras crianças durante a infância, são fundamentais para a formação de um ser humano equilibrado e feliz. A coisa mais séria que uma criança pode fazer é brincar. Quando brinca, a criança inventa mundos e o seu mundo muito pessoal. Este novo ser, este novo mundo, de uma nova pessoa em crescimento físico, afetivo e intelectual, precisa ser preservado e respeitado pelos adultos.
Infelizmente, a infância está sendo invadida, violada, por um mundo adulto artificializado pela sociedade consumista e sexista. A sociedade está negando às crianças o seu direito de simplesmente brincar. São cada vez mais insuficientes os espaços e o tempo de que dispõem para brincar, brincar e brincar. Só isso. As crianças dos centros urbanos, principalmente, quase todas estão sendo sufocadas pela expansão imobiliária e pelas rotinas em ambientes impróprios para brincar e expandir sua alegria de viver e de descobrir o mundo. Muitas delas estão sendo submetidas, diariamente, de forma precoce, a um absurdo conjunto de rotinas que lhes são impostas pelas famílias e pela sociedade. As crianças estão sendo “treinadas”, adaptadas e “produzidas em série”, desde bebês, para serem unicamente indivíduos à imagem e semelhança do deus o Consumidor. A infância tem a sua própria dimensão poética e não pode ser contaminada e desperdiçada pela “felicidade infeliz”, que já desgraça e empobrece a vida de tantos adultos seduzidos por um consumo pelo consumo, reduzido a um “ter” que sempre precisa “ter” mais.
Passeio de criança é no shopping e não na praça ou no parque. Nossas crianças passam cerca de quatro a cinco horas vendo a “maravilhosa” programação deseducativa da maioria dos canais da televisão brasileira. Vão formando, assim, a sua visão de mundo, manipuladas por uma publicidade idiotizante e erotizada, voltada para o consumo sem necessidade. Aprendem o pior da sociedade de consumo, sendo levadas a acreditar que vale mais ter sempre a Coisa e o Objeto mais novos. Perdem a consciência do seu próprio Eu, tornando-se indivíduos indiferenciados, formatados num único padrão de sonhar e viver. Mais “tão” do que “são”.
Crianças são vestidas como adultos, dançam como adultos, ouvem e cantam músicas de adultos, principalmente aquelas de conteúdo vulgar e de melodias extremamente primárias. Crianças consomem como adultos, veem programas de adultos na televisão. As meninas, de modo particular, são induzidas a exibir uma sensualidade precoce. Nem o recreio, em muitas escolas, tem efetivamente o sentido de brincRIar e de recRIar-se. De brincar e de rir o riso fácil, alegre, pleno de vida, que só uma criança consegue extrair da sua alma inocente.
Na era do computador, brincar não é mais uma vivência real. É virtual. Não há uma verdadeira socialização no ato de brincar, de se comunicar. Não há mais uma integração com a vida real, de brincar com amigos reais, de compartilhar a alegria da amizade. A infância não tem mais pátio. Tem unicamente uma tela iluminada, não pela luz do sol, mas pela luz artificial que muitas vezes projeta apenas sombras sobre suas vidas.
Na família, na escola, na sociedade, precisamos retomar os espaços e o sentido de brincar. E uma das experiências mais marcantes na vida de uma criança é o seu contato criativo com a Palavra. A descoberta da palavra escrita e cantada. O livro precisa ser uma presença viva na infância. Principalmente os livros de poesia. De poesia? Isso surpreende aquela mãe ou pai que não tiveram a oportunidade de um contato com a Palavra poetizada. Sim, da poesia, bem escolhida. Através da poesia, do jogo de palavras, rimas e aliterações, os pequenos-grandes leitores podem experenciar uma das melhores brincadeiras da infância: a brincadeira de descobrir os sons e os sentidos das palavras. A leitura de poesia liberta e fortalece a capacidade de expressão e expande a personalidade infantil. “Tenho dito”, uma expressão antiga, é uma forma de dizer que existo e que tenho o que dizer ao mundo.
Brincar com as palavras, no contexto da poesia, é um exercício de liberdade, de criatividade, de recriação da nossa imaginação, da nossa esperança, da nossa capacidade de reinventar nossa própria existência, de recriar nosso destino. Alimentando as nossas inteligências, racional e emocional, pela leitura, tornamo-nos donos da nossa consciência e protagonistas da nossa história. Quem lê cria a própria história!
É preciso aceitar o convite das crianças e da vida: vamos brincar?
Você concorda que é fundamental para o desenvolvimento das crianças retomarem o sentido de brincar?
*ESCRITOR, POETA
Tema para debate – Zero Hora - 24/05/2009
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